the last jasmines

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A ditadura do instantâneo

Acontece que agora o mundo exige que sejamos concisos.

Eu já estava me acostumando a isso. Em roteiro, o melhor é escrever usando o mínimo possível de palavras, de forma clara e direta. Afinal, é um material para ser lido por uma equipe que necessita de indicações muito objetivas sobre o que está acontecendo no filme, para então poder transformá-las nas cenas concretas que a gente adora ver, cheias de ação, drama e situações interessantes. Roteiro não é livro. Até aí, tudo bem.

O problema é que não é só o roteiro de cinema que pede para o escritor ser sucinto. Outro dia fui fazer minha inscrição em um evento de games para conscientização (o Games for Change, que aconteceu em São Paulo há algumas semanas) e o site me pedia para escrever minha biografia em 140 caracteres. Não lembro bem se era 140 ou 180, fato é que era um absurdo assim, à moda do Twitter.

E daí tudo precisa ser muito rápido. As informações chegam e se vão em centésimos de segundo, correndo, fugindo, pedindo para serem clicadas, e logo depois se escondem, somem no meio de tantas outras! Se algum internauta ousado publica um texto um pouco mais longo, já é acusado de ser prolixo. São tantos estímulos instantâneos, tantas imagens, tantas gags, que qualquer coisa que dure mais de um alguns minutos já é o suficiente para a sensação de se estar perdendo tempo.

Se tem uma coisa que eu adoro é sentir que aproveito o tempo o máximo possível. E isso não significa fazer mil coisas em uma hora, sabe? Mas sim fazer uma coisa bem feita, de corpo e alma presentes. Agora há pouco fui à livraria e me lembrei de como é gostoso poder caminhar sentindo as coisas boas que nos cercam. Mas sentindo de coração, desfrutando mesmo, sem ansiedades, sem julgamentos. Estava procurando um presente e achei um livro chamado Da colheita para a mesa, que é lindo. Fala sobre como termos um olhar consciente sobre os alimentos, prestando atenção na melhor época para cada legume, fruta ou verdura… cuidando nos alimentarmos de modo saudável e em respeito ao ritmo da natureza.

Nós, seres humanos do agora, forçamos o tempo! Queremos ter nossos alimentos favoritos todos os meses. Então os produtores plantam as sementes, enchem as mudinhas de veneno, colhem os frutos rapidamente… e o resultado disso nós devoramos num piscar de olhos. Por que gastar vinte minutos para cozinhar um macarrãozinho, se podemos fazer em um três minutos e já com o tempero pronto, olha só? Afinal, temos que trabalhar, temos que correr atrás de dinheiro, não podemos perder tempo, um minuto que seja…

E parece que isso também está acontecendo com as crianças. Criadas cheias de estímulos rápidos, de propagandas de roupas e de brinquedos daqueles que fazem tudo sozinhos. Pela vida corrida e cheia de ansiedade dos adultos, essas crianças vão aprendendo que as coisas são descartáveis. E se as coisas são descartáveis, as pessoas também podem ser. Onde está o valor que se dá ao eterno, ao aprendizado que não é passageiro como a vida das pilhas que se acabam? Esse aprendizado que está nos livros, nas histórias em que a gente mergulha e não quer mais largar, no contato de verdade com as pessoas, nos abraços, nos animais e na natureza? No sentir a vida de forma intensa e maravilhosa?

E aí me pedem para escrever em 140 caracteres. Antes eu até gostava. Sabe, pensava que pudesse ser um desafio à sagacidade. Mas agora eu vejo que parece muito mais uma tentativa desesperada de se deixar marcas (passageiras) no mundo, do que um verdadeiro estímulo à criatividade. Afinal, a vida não é feita de minutos e segundos, ou da quantidade de letras com que se escreve uma frase. A Vida, sim, é feita da matéria com que preenchemos essas lacunas. É feita de momentos com os nossos amigos, de passeios pelo mundo, de histórias boas, de alimentos preparados e desfrutados com carinho, de reflexões e de uma consciência real acerca do que está ao nosso redor. A verdadeira Vida, ela sim, é feita de Amor. Tanto faz se isso vem em dois segundos ou em cem horas, em duas frases ou em cinco volumes. O que é eterno é eterno, e nisso não dá para colocar ponto final.

Meus jardins secretos

“O Jardim Secreto” sempre foi um dos meus filmes favoritos. Desde criança, quando o vi pela primeira vez – e olha que nem lembro em que ocasião foi – o fato é que ele ficava na minha cabeça. Os jardins, aquela coisa misteriosa que a gente não sabe onde se localiza exatamente. A sensação de andar sobre a grama úmida cheia de sementes, cheias de segredos que só as raízes das plantas conhecem.

Ao mesmo tempo, criar um jardim é como criar uma parte de nós mesmos. Escolher o que se planta, mas não escolher exatamente tudo, já que sempre há alguma coisa que não se sabe completamente. Sempre há uma parte intocada, e talvez a beleza de tudo seja mantê-la em segredo mesmo. Em segredo para os outros e até para nós.

Fato é que os jardins sempre povoaram a minha mente, com toda essa carga dramática que eu atribuo a eles. Tanto foi que, tempos depois, descobri que cultivá-los dependia apenas de mim. Comprei as mudas, a terra, os vasos, fiz do meu tempo a minha dedicação a eles. É maravilhosa a sensação da terra entre os dedos quando se planta uma muda, seja ela de manjericão ou lavanda, de alecrim ou das capuchinhas que servem até para comer nos dias quentes de verão.

Mas esses jardins se estendem ainda mais. Quando descobri em alguma fotografia os campos de tulipas holandesas, isso já se tornou uma grande meta para mim, ainda não que não fosse concreta. Eu sabia que algum dia iria querer vê-las de perto, sentir que tudo o que me rodeia são só elas e mais ninguém. Eu as colocava nas histórias que escrevia, sem parar. Apareceram até no roteiro do meu TCC, que se chamava “Tulipas”. Demorou até que eu percebesse que essa ânsia por ver essas flores podia se tornar uma realidade. E lá fui rumo a esse sonho, na cara de na coragem, mochila nas costas, viajando sozinha pela primeira vez na vida.

A Holanda estava em primavera. E já saindo do aeroporto em Amsterdam, quando vi a primeira tulipa em um canteiro, meu coração já se encheu de alegria. Não eram de mentira, eram tão verdadeiras como eu mesma me encontrava ali em presença, tocando-as e sentindo as suas pétalas macias e os seus caules compridos bem verdes.

Estavam por toda parte. Nas casas, nas ruas, nos jardins onde o sol batia bem quentinho (ainda fazia um pouco de frio). Mas eu queria mesmo era ver os campos, o campos infinitos de tulipas vermelhas, amarelas, negras, brancas, rosas, como as havia visto do alto, lá do avião.

Mas demorou. Por conta da Festa da Rainha que deixou a cidade apinhada, aproveitei para visitar um amigo em Paris, o Walter, que estava fazendo doutorado lá. Claro, a Cidade Luz também é incrível e me tomou muita atenção. Por cada rua que passava, geralmente sozinha, eu me reconhecia e me conhecia, trocando ideias com as pessoas, com os lugares, com as árvores e cachorros, com o céu e com o sol, anotando em meu caderno o que não quisesse esquecer de jeito nenhum.

E lá – olhe só – também fui a um Jardim. O Jardim de Monet. Maravilhoso, cheiroso, todo salpicado de flores. Milhares delas, que faziam a casa parecer uma grande pintura viva.

O bom de viajar sozinha é que ninguém enche o saco para ir embora ou fazer compras, então me dei ao luxo de passar tanto tempo quanto quisesse naquele jardim. Conheci cada cantinho e descansei em um dos bancos, ao sol. Havia muitas crianças lá, em excursões de escola com professorinhas francesas. Que maravilha deve ser morar no país onde viveu Monet.

Vi depois as suas obras no Museu do Impressionismo, na cidade onde ele morava, Giverny. Novamente, muitas pinturas de flores e de jardins, de natureza. É um contato com a natureza que é impressionante, e muito calmante também, como se ela fosse mesmo uma grande mãe com seus braços a nos acolher, sussurrando: “não tenha medo, o mundo tem muitas coisas lindas para você!”.

Então voltei à Holanda e já faltavam poucos dias para vir embora. Eu quis deixar por último a visita aos Jardins Keukenhof, que é esse enorme, gigantesco jardim paradisíaco de tulipas, crocos, narcisos e tantas outras flores. Quis deixar por último porque queria que ele fosse a lembrança mais fresca na minha memória.

Peguei um ônibus bem cedo e saí de Amsterdam. Os jardins ficam em Lisse, que é uma cidade perto de lá, pequenininha. Estava com uma expectativa muito alta, pois era meu último dia na Holanda e nos dois anteriores havia chovido muito. Apenas nesse dia o sol brilhava muito forte e me senti muito feliz por isso.

Quando entrei no jardim, foi aquela alegria sem tamanho. Fiquei andando por todos os cantos, sorrindo feito pinto no lixo, querendo tirar fotos pra não me esquecer nunca, nunca, do quão belo era aquele lugar. Como no jardim de Monet, descansei um tempão ouvindo os sons da natureza, desenhei o que via, escrevi. Era um lugar muito inspirador.

Mas então eu descobri que o jardim não estava em sua plenitude. Alguns dias atrás, enquanto eu estava em Paris, os jardineiros haviam podado as flores que já começavam a sofrer por causa do calor do fim da primavera. Por isso os campos e os canteiros não estavam tão cheios.

Então fiquei triste com isso. Porque sempre uma parte de nós quer o perfeito, e fiquei chateada ao ver que diante de mim estava o quase-perfeito. Fiquei alguns minutos lutando comigo mesma, me culpando por não ter ido lá antes, até conseguir entender que eu já estava vivendo um sonho tão grande que seria muito egoísmo querer mais do que já estava recebendo.

Voltei para casa realizada, em contato com raízes profundas que eu nem sabia que existiam. Deixei uma parte muito grande de mim naquele lugar, naqueles jardins. Deixei meus segredos, que agora as plantas e as flores também conhecem. Mas também encontrei novos segredos, novos sonhos, novas vontades. Lá eu pude andar de bicicleta depois de muito tempo, e nessa sensação do vento no rosto eu vi o quão libertador pode ser viajar sozinha, me conhecendo melhor, conhecendo melhor o mundo, os sentimentos, as pessoas, de uma forma intensa.

Minha viagem não terminou, não há dúvidas disso. Ela está só começando, e se os jardins forem sempre a minha maior motivação, que eles então permaneçam sempre intocados e misteriosos dentro de mim, chamando-me a cada dia para descobrir as suas maravilhas.

O Raio Verde

Nos tempos em que eu criava o projeto de seriado Théo, meu tutor e amigo Claudio Yosida me contou de sua admiração por Eric Rohmer e me indicou um dos seus melhores filmes, O Raio Verde, de 1986. Anotei o nome, mas só fui ver muito tempo depois. Já aconteceu de vocês terem visto um filme e pensado: “nossa, se o tivesse visto antes, certamente minha vida teria sido melhor”? Foi assim.

O Raio Verde conta a história de Delphine, uma jovem parisiense que não tem nada para fazer nas suas férias de julho depois que uma amiga desiste de viajar com ela. Sempre observadora, Delphine se sente deslocada do mundo e das pessoas, não consegue se envolver completamente em nenhuma situação e está sempre descontente. Ela viaja de um lado para o outro, sem rumo, conhecendo pessoas e fugindo das ocasiões em que se sente ameaçada. Mas, no processo, começa a perceber que existe sim uma esperança de mudar, de amar a si mesma e aos outros, de se sentir amada e feliz. Uma esperança que corta o horizonte como um raio verde ao fim do poente.

Assisti-lo me fez relembrar uma época em que eu era como Delphine. Reclusa, triste, observadora ao extremo, deslocada do mundo e achando que era a princesa perdida em uma torre fria de marfim, inatingível por todos – e, como percebi depois, por mim mesma. Foi difícil mudar – e, por mais que por vezes ainda me sinta no terrível direito de querer ficar sozinha olhando para o teto como se fosse a tela de um filme que não acontece, hoje consigo enxergar novas perspectivas.

Sinto que vivo mais. Sinto que consigo ser mais honesta com meus sentimentos, consigo me expressar com mais fluência e – principalmente, me relacionar com as pessoas de forma a pulsar o amor que há em mim. O amor que antes era invisível, inalcançável, oculto pela camada da razão e da intelectualidade extremas – que disfarçavam com aparente sucesso o meu enorme pavor de estar viva.

Há amor em mim, há amor em nós. O raio verde não é um mito. Apesar de ser difícil vê-lo, está lá, esperando para preencher o céu com esperança lancinante. E, caso deixemos passar o instante decisivo, há um consolo: o sol se põe todos os dias – logo, sempre há uma nova chance para mudarmos o que nos tem impedido de sermos felizes.

Kytice

O poeta e escritor tcheco Karel Jaromír Erben escreveu, em 1853, uma coletânea com 12 baladas baseadas no folclore de seu país, entre contos de vingança, traição, amor, paixão, vida e morte. 150 anos depois, o diretor F.A. Brabec quis reunir sete delas em um filme repleto de poesia visual. O resultado foi estonteante: Kytice não só preenche os olhos com planos magníficos, como também lança aos corações emoções primitivas, universais e ainda assim únicas para cada estória.

Entrar em contato com essa parte obscura, instintiva do comportamento humano pareceu me lançar luz ao que há de belo na ingenuidade de se confiar nas emoções. Entregar-se ao amor, correr em bosques floridos, mergulhar no desconhecido, semear-se e colher sem desconfianças – será essa a verdadeira fé na vida?

Por que tenho medo do que não sei? Por que não ouso sair de casa, por que me sinto ameaçada pelos que nem me conhecem? Por que, aos meus olhos, meus próprios olhos me vigiam, me culpam, controlam meus passos?

Kytice me fez pensar, e talvez tenha surtido algum efeito. O medo de viver, de certa forma, nos ata à morte. Como nos ritos de Perséfone, cortam-se os fios de cabelo que nos prendem à vida e, pouco a pouco, caminhamos em direção ao nosso próprio fim. No meu caso, decidi dar um basta a quaisquer comportamentos destrutivos. Quero viver, semear-me e colher sem desconfianças. A semana que passou parece ter refletido um pouco dessa mudança, e sinto que ela não vai parar até que eu queira. Não quero.

Hoje, desejo a vocês a vida. Completa, redonda, honesta e autêntica, em contato com o que de mais verdadeiro se esconde em nossas emoções e sonhos, até mesmo os mais sombrios.